Heráclito "on steroids"
Associar o filósofo pré-socrático Heráclito à dinâmica de transformação atual é quase um clichê. Sua visão de um mundo em transformação constante, simbolizada por sua famosa frase sobre a nossa impossibilidade de entrar em um mesmo rio pela segunda vez, pode ser vista em dois recentes "best-sellers" retratando a atual revolução digital: "The Inevitable", do fundador da revista "Wired", Kevin Kelly, e "The Four", do professor de "brand strategy" da Universidade de Nova York, Scott Galloway.
Tal processo de transformação sempre foi dominante no meio acadêmico. Nos últimos anos, este "tornar-se", também conhecido pela palavra "devir", vem sendo intensificado pelo vasto uso da mídia digital como se este sofresse da influência de anabolizantes. Suas consequências, entretanto, tendem a ser perversas.
Consideremos os três fatores de produção tradicionais e essenciais à produção de bens: a terra, o trabalho e o capital. Ter um país grande e populoso, embora não fosse garantia alguma de sucesso, no passado sempre representou a possibilidade de desenvolvimento de um vasto mercado consumidor e de acesso a mão-de-obra barata. Não é à toa que, em um ranking de países ordenado por PIB nominal, o Brasil encontra-se próximo a oitava posição enquanto a Holanda mais próxima da décima oitava. Visto de forma agregada, a maior população brasileira permite ao Brasil um melhor posicionamento em tal ranking.
E aí, invoca-se Heráclito, e de forma análoga, afirma-se que este tempo ficou para trás. O passado pertenceu a empresas grandes, com dimensões de um "Brasil". Pertenceu a gigantes como a GM e a Walmart. A segunda, um símbolo norte-americano do período pós-guerra, conseguiu gerar enorme riqueza em um processo expansionista que a transformou na maior empregadora do mundo, com 2,1 milhões de funcionários espalhados ao redor do globo. Ao dividirmos sua capitalização de mercado por seu número de funcionários, atribuímos uma criação de riqueza de US$145,000 a cada funcionário. Já a Amazon, um dos símbolos da revolução digital, responsável por enorme disrupção no varejo mundial, afetando diretamente a própria Walmart, conta com somente 350.000 funcionários. Sua capitalização de mercado, entretanto, é quase o dobro da sua concorrente mais velha. Sendo assim, atribui-se a cada funcionário da Amazon a geração de riqueza equivalente a US$2,8 milhões. Dito de outra forma, a Walmart precisa de 19 funcionários para produzir o que um funcionário da Amazon produz.
Naturalmente, tais números estão carregados de distorções; a mais gritante podendo ser o esticado "valuation" da própria Amazon. Mesmo assim, considero este exemplo apropriado para ilustrar a mensagem que busco transmitir que é a de que, em breve, países menos populosos, como a Holanda, poderão superar países mais populosos, como o Brasil, através de um melhor uso de novos fatores de produção, como o uso da Inteligência Artificial.
Na área de mídia digital, onde a Google e a Facebook abocanham mais de 70% da receita global, tal fenômeno toma proporções homéricas. A gigante da área de publicidade WPP, por exemplo, emprega mais de 200 mil funcionários para uma capitalização de mercado que é menos de um vigésimo de sua concorrente, a Facebook, que emprega somente 17.000 funcionários.
É justamente o uso desta "inteligência" que faz com que as quatro gigantes descritas no livro "The Four", de Galloway, tenham uma capitalização de mercado que, somadas, supera o PIB de todos os países com exceção do registrado pelos EUA, China, Japão e Alemanha.
Isso é fascinante, é novo e é perigoso! A corrida para aumentar as chances de que seu filho tenha condições de trabalhar em uma destas novas gigantes é algo que, além de caro, pode ser considerada, pelo próprio filho, como uma tarefa "ingrata". A escassez de vagas e a intensa competição por estas poderá levar os jovens a uma depressão similar à vista por jovens que disputavam uma vaga para trabalhar nos "zaibatsus" japoneses.
A ironia é que o uso destas novas tecnologias, ao mesmo tempo em que aumenta a riqueza mundial, a faz de forma cada vez mais desigual.
Marink Martins