O especulador de sardinhas

21/10/2020

Há uma passagem no livro "Margin of Safety", do gestor Seth Klarman, em que ele nos conta uma velha história de mercado.

Diz ele que, em um passado distante, ocorreu uma forte valorização nas latas de sardinha devido a um problema de oferta do produto na California. Após uma forte alta no preço, um determinado trader decidiu comemorar os lucros obtidos no ciclo de alta abrindo uma lata e consumindo o próprio produto. Ao fazer isso, o trader passou mal e resolveu procurar o vendedor para reclamar do ocorrido. No que o vendedor respondeu: "você não entendeu! Essas sardinhas não são para consumir; são para "treidar"!!!

Resgato esta anedota para tentar ilustrar um ponto após ler os comunicados de duas empresas americanas que divulgaram seus resultados do 3t20 após o fechamento do mercado desta terça-feira: a Netflix e a Snap.

A Netflix frustrou os investidores ao divulgar que o número de novos assinantes cresceu em um ritmo extremamente lento em termos históricos. O preço das ações caiu 5% no after-market.

Curiosamente, a empresa continua a valer aproximadamente 70x o lucro projetado para 2020, mesmo com seu presidente sinalizando que o ritmo de crescimento, a partir de agora, é outro; bem inferior ao registrado no passado.

Já a Snap surpreendeu os investidores positivamente. O preço de suas ações subiu 20% diante da notícia de um crescimento expressivo na receita e no número de usuários.

Contudo, qualquer um que olhar cuidadosamente os números divulgados pela Snap verá que existe uma elevada probabilidade de que suas ações são análogas as sardinhas descritas na anedota contada por Klarman.

Digo isso, pois, embora as vendas tenham crescido de forma significativa, as despesas operacionais cresceram no mesmo ritmo. A empresa, que vale hoje 35 bilhões de dólares, já acumula prejuízo de 8 bilhões nos últimos anos; sem perspectiva alguma de reversão no resultado no curto prazo.

A Snap é uma empresa que negocia a um múltiplo de 15x sua receita projetada para o ano de 2020. Não registra lucro. Mesmo pagando seus principais funcionários com novas ações emitidas, a empresa não consegue gerar um caixa operacional positivo. A alavancagem é crescente. A estrutura de capital é problemática, com os fundadores detendo o controle da empresa através de "super shares".

Acima, o fluxo de caixa operacional da SNAP. Observe que, nos últimos 9 meses, a empresa registrou um prejuízo líquido de quase 800 milhões em cima de uma receita de 1.6 bi de dólares. O fluxo de caixa operacional, porém, mostra um consumo de caixa de somente 115 milhões de dólares, devido ao fato de que os principais funcionários recebem ações ao invés de dinheiro como forma de pagamento. E toma diluição na cabeça. 

Mas, vamos lá, você acha que o especulador de sardinha perde tempo olhando para isso? Ele está ocupado ganhando dinheiro com os movimentos exponenciais no papel. Enquanto eu escrevo essa minha crítica ao movimento especulativo, o cara já comprou, vendeu, vendeu e comprou umas 5 vezes, só no After Market.  

Se a Snap pode parecer um exemplo distante, saiba que o mercado brasileiro também tem suas sardinhas sendo negociadas ativamente.

Neste mês, empresas como MMX, OSX e Recrusul ocuparam um espaço na mídia ao apresentarem fortes valorizações. Chegamos a uma fase em que, a cada dia, surge uma nova candidata a sardinha da vez. Esse ciclo, não só é interessante, mas é também o mais fascinante. Com um número recorde de IPOs negociando a múltiplos na estratosfera, não irá faltar histórias para​ contarmos daqui a uns anos quando falarmos sobre o grande ciclo de "boom/bust" pós-pandemia.

Marink Martins

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